Eu fiquei engasgado com sua afronta. Num primeiro momento o meu desejo era dizer-lhe uns desaforos, mas não tive tempo.
Sua frase me perseguiu ao longo de todo o dia, mas aos poucos ela foi perdendo o seu poder de agressão.
A frase do rapaz me fez lembrar a regra de ouro da Hermenêutica, a ciência da interpretação. “Todo texto pede um contexto.” Eu não tive tempo para compreender o contexto da frase. Não sei qual foi a experiência religiosa que fomentou aquela compreensão. É bem provável que o rapaz tenha sido vítima de um discurso religioso opressor, pouco sensato. Esse discurso sempre fez parte das culturas humanas. Ensina uma crença que passa longe do bom senso. Interpreta o livro santo ao pé da letra, fundamenta em textos descontextualizados, e justifica com parcas teologias as absurdas caricaturas divinas que foram elevadas aos altares.
O insulto do rapaz me fez pensar na forma como creio em Deus.
Fez-me recordar meu tempo de magistério, quando em sala de aula eu vivia o desafio de propor que a religião só é possível quando os joelhos no chão sustentam uma cabeça que não tem medo de pensar. A fé em Deus não é afronta à inteligência. Não é preciso abrir mão da capacidade intelectiva para admitir a transcendência. E sobre isso gostaria de ter falado ao jovem moço.
Crer em Deus é mais trabalhoso do que não crer. Como tão bem sugeria o escritor mineiro, Guimarães Rosa, a fé é o discurso da terceira margem. Requer abstrações muito elaboradas. É através delas que interpretamos o mundo. Deus não nos aliena, mas nos contextualiza. É simples. Eu acredito na proteção divina, mas olho para os dois lados da rua antes de atravessá-la. É uma questão de bom senso. Não posso crer que Deus venha fazer por mim aquilo que só a mim compete. Não sei quem foi que disse, mas há uma frase bastante sugestiva que gosto muito “Nós só temos o direito de esperar pelo impossível depois de termos feito tudo o que nos foi possível.”
É verdade. Crer em Deus dessa forma é razoável. Não é nenhuma afronta à inteligência humana admitir essa crença. A maturidade espiritual nos sugere que a ação humana legitima no tempo a ação de Deus. Só assim podemos compreender o cuidado divino. O bem que Deus quer para o mundo passa o tempo todo pelas escolhas que fazemos. Se eu me descuido das questões do meu tempo é bem provável que Deus perca a oportunidade de agir no espaço onde estou situado. O ser humano é local teológico privilegiado da ação divina.
É por isso que a fé encarnada, vivida e experimentada sem alienações só pode fazer bem à sociedade. O mundo seria bem melhor se os religiosos do nosso tempo pregassem um pouco mais essa parceria: humano-divina. Deus nos concedendo os dons necessários, e nós realizando a tarefa nossa de cada dia. Talvez assim a gente conseguisse diminuir as tragédias no mundo.
Padre Fábio de Melo
Fonte: Jornal O Dia
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